Rádio Colibri #24: Epistemicídio, injustiça epistêmica, e racismo na saúde mental

No penúltimo episódio da série “Saúde mental e racismo”, discutimos os conceitos de epistemicídio e injustiça epistêmica e, com a ajuda do prof. Lauro Barbosa, refletimos sobre a formação nas áreas da saúde mental e sua conivência com o racismo.

Orelo: https://app.orelo.cc/ygo9

Spotify: https://open.spotify.com/episode/7LNiF2OqDlIgQ8ruiu46F0?si=mS1NpfpgRRii9cScjZz59g

Apple Podcasts: https://podcasts.apple.com/us/podcast/r%C3%A1dio-colibri-24-epistemic%C3%ADdio-injusti%C3%A7a-epist%C3%AAmica/id1565762521?i=1000649066827

Deezer: https://deezer.page.link/ojVRFAZAxRgx7UGV8

Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=OLcul4VSqsQ&t=548s

Ficha técnica

Roteiro: Caio Maximino, Lua Suelen Wanderley de Oliveira

Locução: Luane Alencar, Talita Souza, Caio Maximino

Esse podcast é distribuído sob uma Licença Feminista de Produção por Pares: https://coletivoponte.noblogs.org/post/2020/11/22/a-licenca-feminista-de-producao-por-pares-f2f/

“This licence does not allow artificial intelligence algorithms to be trained nor improved with any creative material contained in this web, text or resource.”


Série “Saúde mental e racismo”


Transcrição do roteiro

No seu livro “Pele negra, máscaras brancas”, o psiquiatra Frantz Fanon relata um episódio que, independente de ser fictício ou não, é bastante representativo da experiência vivida de ser negro em um mundo colonizado. Uma criança branca vê um homem negro e se dirige à sua mãe, dizendo “Mamãe, olhe, um preto”. Fanon prossegue: “‘Olhe, um preto!’ Era um stimulus externo, me futucando quando eu passava. Eu esboçava um sorriso. ‘Olhe, um preto!’ É verdade, eu me divertia. ‘Olhe, um preto!’ O círculo fechava-se pouco a pouco. Eu me divertia abertamente. ‘Mamãe, olhe o preto, estou com medo!’ Medo! Medo! E começavam a me temer. Quis gargalhar até sufocar, mas isso tornou-se impossível”. Nesse trecho, Fanon mostra como basta um olhar para objetificar o negro. Do ponto de vista racista, o discurso que as pessoas negras fazem sobre si é imediatamente apagado.

Em um livro publicado originalmente em 2007, a filósofa Miranda Fricker articula o conceito de “injustiça epistêmica”, a prática de desacreditar as pessoas como incapazes de conhecer algum aspecto do mundo somente por causa de sua identidade social. A injustiça epistêmica enfraquece a capacidade das pessoas de se engajarem em práticas epistêmicas (isso é, formas e tentativas de conhecer o mundo), como repassar seus conhecimentos a outras pessoas ou interpretar suas próprias experiências. O conceito de injustiça epistêmica pode nos ajudar a entender um pouco mais sobre a intersecção entre racismo e sofrimento psicológico, já que, como a história de Fanon nos indica, tanto pessoas não-brancas quanto pessoas em sofrimento são alvo dela. Nos episódios anteriores da série “Saúde mental e racismo”, discutimos um pouco a dimensão subjetiva do racismo, e sobre como o racismo construiu a história da saúde mental no Brasil. Nesse episódio, queremos pensar um pouco sobre injustiça epistêmica e epistemicídio na formação das profissões da saúde mental, e como o epistemicídio sustenta esse problema. Nosso terceiro episódio da série “Saúde mental e racismo” já começou! Direto da Comuna Imaginária do Akanga, essa é a Rádio Colibri!

[Vinheta]

O conceito de injustiça epistêmica vêm sendo bastante discutido no campo da saúde mental. É um conceito importante para a área, porque reflete estigmas e estereótipos negativos que afetam pessoas com transtornos mentais, e que leva a uma espécie de déficit de credibilidade. A consequência da injustiça epistêmica, no caso da saúde mental, é que os testemunhos e interpretações dadas por uma pessoa com um diagnóstico de transtorno mental costumam ser desacreditados, tratados como descartáveis e não-confiáveis. Assim, pessoas em sofrimento psíquico são desqualificadas em sua capacidade de conhecer e contribuir com o esforço epistêmico para chegar a um diagnóstico e tratamento corretos. Afinal, o que sabe um louco sobre sua loucura? Não é o profissional de saúde que é especializado? As pessoas lidas como doentes mentais são cercadas de estereótipos. Esses estereótipos incluem ver as pessoas com diagnósticos como se fossem cognitivamente prejudicadas ou emocionalmente comprometidas; ou como existencialmente instáveis, dominadas por ansiedades de tal forma que “não conseguem pensar direito”; ou como psicologicamente dominadas pelo transtorno de uma forma que distorce sua capacidade de descrever e relatar suas experiências com precisão. Como o sofrimento psicológico geralmente evoca sentimentos fortes nas pessoas afetadas, os profissionais de saúde costumam considerar que suas emoções têm um efeito prejudicial sobre o pensamento dos pacientes, distorcendo os relatos que eles fazem sobre sua doença.

Miranda Fricker descreve vieses cognitivos que produzem duas categorias de injustiça epistêmica. Na injustiça testemunhal, recusa-se a reconhecer a validade das crenças e afirmações de uma pessoa com base em características irrelevantes de sua identidade social. Na injustiça hermenêutica, um grupo social não é capaz de dar sentido de características importantes das vivências de uma pessoa, porque essa pessoa é parte de um grupo marginalizado em relação a produção de sentido. Quando a criança diz ‘Mamãe, olhe o preto, estou com medo!’, é um exemplo de injustiça hermenêutica: a sociedade é incapaz de entender a experiência vivida da negritude e de valorizar suas características culturais e diferenças, e portanto cria um estereótipo que apaga os sentidos que essa pessoa poder produzir, substituindo-o pela narrativa da violência.

A injustiça epistêmica é, em certo sentido, a base histórica do racismo na saúde mental. Considere o exemplo da drapetomania. No século XIX, o médico americano Samuel Cartwright cunhou um termo diagnóstico, drapetomania, para descrever as causas das tentativas de fuga de pessoas escravizadas de suas plantations. Para Cartwright, se uma pessoa negra estava tentando fugir de sua condição, o que ocorria ali era sintoma de uma doença mental. Nunca ocorreu a ele validar as experiências das pessoas escravizadas e se perguntar o que, na experiência vivida dessas pessoas, as faria fugir de uma situação profundamente degradante e violenta. De maneira semelhante, a narrativa de Fanon que apresentamos no começo do episódio mostra como, em uma sociedade profundamente racista, a experiência vivida do próprio corpo é interpelada e atravessada pelo olhar das pessoas brancas.

Existem aproximações importantes entre o conceito de injustiça epistêmica e o conceito mais amplo de “estigma”. Claro, existem também muitas definições de estigma – algumas mais e outras menos interessantes para uma saúde mental crítica. O sociólogo canadense Erwing Goffman, em seu livro “Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada”, afirma que “a sociedade estabelece os meios de categorizar as pessoas e o total de atributos considerados como comuns e naturais para os membros de cada uma dessas categorias”. Pensando a partir do conceito sociológico de identidade, Goffman afirma que, além das identidades reais produzidas e vividas pela maior parte das pessoas, aquelas pessoas que carregam um estigma também possuem uma identidade virtual. A identidade real é o conjunto de categorias e atributos que a pessoa demonstra, enquanto a identidade virtual é o conjunto de atributos que são exigidos e imputados pelas pessoas em relação a um determinado grupo. Quando a criança diz ‘Mamãe, olhe o preto, estou com medo!’, imputa um conjunto de atributos às pessoas negras que envolvem estereótipos de violência e desumanização.

Esses processos se compõem de maneira ainda mais intensa quando pensamos nas intersecções entre raça e saúde mental. É difícil pensar em uma intersecção que carregue mais estigmas e injustiça epistêmica do que o homem negro que tem um diagnóstico de transtorno mental e que também faça uso de drogas, mas essa é a situação de uma parcela considerável da população. Tratam-se de pessoas que carregam a marca de corpos passíveis de serem violentados, inclusive porque assume-se que são pessoas desonestas em quem não podemos confiar.

No nosso primeiro episódio da série “Saúde mental e racismo”, conversamos com Lauro Barbosa, do curso de Psicologia da Unifesspa, que falou sobre Fanon e o processo de deslegitimização. Ele falou pra gente um pouco sobre a própria experiência de Fanon com o epistemicídio

[Fala do Lauro]

Michel Foucault, filósofo e teórico social francês, desenvolveu o conceito de dispositivo como uma espécie de arranjo heterogêneo de elementos que se relacionam e funcionam juntos para regular, controlar e normalizar comportamentos, discursos e subjetividades. Esses dispositivos exercem poder e produzem conhecimento, moldando a forma como vemos e vivemos o mundo.

Assim como Foucault localiza na formação do dispositivo de sexualidade uma motivação, uma estratégia da classe dominante para se reafirmar uma classe hegemônica, Sueli Carneiro, ativista e feminista negra brasileira, vai observar em sua tese que esse processo de auto-afirmação de classe foi acompanhado, para além da constituição desse dispositivo de sexualidade, pela emergência ou operação do dispositivo de racialidade, no qual a cor da pele irá adquirir um novo estatuto.

O dispositivo de racialidade, segundo Carneiro, é um conjunto de práticas, discursos, representações e instituições que têm como objetivo manter e reproduzir hierarquias raciais, privilegiando o corpo branco e burguês em detrimento de outros. Esse dispositivo opera de maneira sutil e invisível, mas tem um impacto profundo nas vidas das pessoas negras, limitando suas oportunidades, negando sua humanidade e reforçando estereótipos negativos.

Esse dispositivo está enraizado em nossa história de colonização e escravidão, moldando as relações entre grupos raciais e perpetuando estereótipos, preconceitos e discriminação. Carneiro destaca que “O racismo não é apenas um conjunto de atitudes, mas uma estrutura de poder que opera nas diversas dimensões da vida social”, e pontua que o racismo como fenômeno estrutural e sistêmico se manifesta também nas instituições, nas políticas públicas e nas interações diárias.

Nessa perspectiva, Sueli torna explícito que o dispositivo de racialidade é um conceito poderoso que, historicamente, serviu para a marginilização do negro e potencialização da desigualdade e agressividade contra esses indivíduos, ela afirma que: “(…) nas sociedades como a nossa, de histórico escravista e onde o colonialismo estrutura suas relações, o racismo, enquanto tecnologia é o que faz com que a violência perdure, atualizada nas novas dinâmicas do capital“.

A desigualdade racial histórica que perdura na sociedade vigente, ilustrada por Carneiro, é fator essencial para o desamparo psicológico de pessoas negras. O racismo estrutural e a discriminação racial vivenciados diariamente pelo povo negro criam barreiras significativas e obstáculos para o acesso a recursos e oportunidades, isso inclui a falta de acesso a serviços de saúde mental de qualidade, a negação de tratamento adequado e o estigma em torno das doenças mentais.

No livro “Ordem médica e norma familiar“, Jurandir Freire Costa diz que a figura do negro escravizado era frequentemente utilizada, na formação médica, como exemplo de corrupção física e moral para a construção da consciência nacional e do modo como o corpo dos brasileiros deveria ser subjetivado. Aos olhos da medicina colonial, mulheres, negros e indígenas eram impuros e enfermos. Pelos meios da assistência psiquiátrica, o racismo de Estado determina os que devem ter saúde mental, e os que podem viver atormentados em seu sofrimento produzido pelas condições sociais, os que devem viver e os que devem morrer, como diz Foucault. É o Estado racista também que determina sob quais condições tratamos da saúde mental da população brasileira, que tipo de investimento,com quais psicologias e quais abordagens.

A construção social enraizada na supremacia branca perpetua e beneficia o grupo racial dominante em detrimento dos outros compactua, mesmo que de forma invisível, para a desvalorização do corpo e mente de pessoas negras. Sueli afirma que existe enraizado o senso comum segundo o qual a vida dos brancos vale mais do que a de outros seres humanos e o estabelecimento do branco burguês como paradigma estético para todos. Aqui está o princípio da auto-estima e a referência do que é bom, desejável e suscetível de proteção e amparo no mundo.

Esse processo também está assentado sobre a formação de profissionais no campo da saúde mental, em um processo de epistemicídio. O Lauro falou pra gente sobre isso

[Fala do Lauro]

Os profissionais da saúde mental são incapazes de reconhecer a linguagem, o comportamento e as atitudes racistas internalizadas de seu próprio racismo encoberto. Para o usuário afrodescendente, tal experiência estressante e traumática tem efeito cumulativo ao longo da vida e impactará a saúde mental da pessoa. O profissional que, teoricamente, contribuiria para o alívio da pessoa, ao contrário, lhe inflige mais dor.

Deixe um comentário

Crie um site como este com o WordPress.com
Comece agora