Rádio Colibri #23: A história racista dos manicômios (Série “Saúde mental e racismo”, pt. 2)

Saudações antimanicomiais!

Nesse segundo episódio da série “Saúde mental e racismo”, discutimos, com a a ajuda de Ana Terra de León, como o racismo estruturou a história dos manicômios, e as implicações dessa história para a atenção à saúde mental nos dias de hoje.

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Ficha técnica

Roteiro: Tainá Pureza, Luane Alencar, e Caio Maximino

Locução: Talita Souza e Luane Alencar

As músicas do episódio são da BlueDot

Distribuído sob uma Licença Feminista de Produção por Pares: https://coletivoponte.noblogs.org/post/2020/11/22/a-licenca-feminista-de-producao-por-pares-f2f/

“This licence does not allow artificial intelligence algorithms to be trained nor improved with any creative material contained in this web, text or resource.”

Transcrição do roteiro

O sociólogo Luiz Augusto Campos, no seu artigo “Racismo em três dimensões”, afirma que o racismo é um fenômeno fundamentado em ideologias, doutrinas e um aglomerado de preceitos que impõem a ideia de “hierarquização natural das raças”. Desde os primórdios do Brasil colonial, é observada a reprodução de uma lógica racista embasada no cientificismo eugênico, onde, a crença da superioridade de um conjunto de características mentais e físicas em relação a outras promoveu a estratificação do ser humano em raças. Nas ciências médicas, principalmente entre os anos de 1870 e 1930, as justificativas criadas para inferiorizar a população negra pelos intelectuais da época eram baseadas no positivismo e no determinismo – como foi feito por Batista Lacerda e Roquette Pinto, que acreditavam na superioridade de “caracteres mentais, somáticos, psicológicos e culturais da raça branca”.

No episódio anterior da série “Racismo e saúde mental”, discutimos um pouco a dimensão subjetiva do racismo – isso é, como, ao serem tratados a partir da infantilização e da desumanização, as pessoas não-brancas desenvolvem tanto sintomas de sofrimento, e, ao buscarem criar para si uma “máscara branca”, são envolvidos em outras formas de produzir sofrimento. Nesse episódio, queremos pensar um pouco como isso se construiu na história do Brasil, e como essa bagagem histórica de preconceitos raciais estruturou o manicômio como uma instituição que, ao longo dos séculos, foi utilizada para repressão e ocultamento de populações consideradas impróprias para viver em sociedade. Nosso segundo episódio da série “Racismo e saúde mental” já começou! Direto da Comuna Imaginária do Akanga, essa é a Rádio Colibri!

No início do século XX, o psiquiatra Henrique Roxo associa a raça com a loucura e inferioridade intelectual. Ele afirmou que a imbecilidade ocorria habitualmente nos pacientes negros, mas esclarece estar se referindo as manifestações patológicas, visto que: “As raias da imbecilidade atingem, em geral, todos os pretos”. Essa formulação profundamente racista não é uma manifestação isolada, só uma “opinião” de uma única pessoa, mas uma forma de pensar a saúde a partir dessa dimensão racializada com um viés racista e eugenista. Jurandir Freire Costa, em seu livro “História da psiquiatria no Brasil”, faz um recorte de um momento de fundação da psiquiatria brasileira, afirmando que “A Psiquiatria e as ciências humanas (Psicologia, Sociologia, Pedagogia, etc.) surgiram no século XIX como justificativas teóricas das práticas de disciplina corporal. As técnicas de disciplinarização do corpo tinham por objetivo a criação de um sujeito apto a submeter-se às exigências econômicas, sociais e políticas da sociedade européia daquele século”. Quando a psiquiatria e a psicologia chegam ao Brasil, no final do século XIX e começo do século XX, é com essa demanda que elas vêm. Freire Costa se foca na Liga Brasileira de Higiene Mental que, nas décadas de 1920 e 1930, criou as bases para o pensamento psiquiátrico brasileiro. 

O programa da Liga Brasileira era profundamente racista: “Desde o início do século XX, e  em particular nos anos 30, a Psiquiatria brasileira deu muita importância à incidência/prevalência dos diversos tipos de doença mental e sua distribuição étnica. Pode-se averiguar deste modo que, neste período, a população negra e mestiça era muito mais atingida pelas doenças mentais de origem toxicoinfecciosa (sífilis, alcoolismo) que a população branca. Entre os brancos, predominavam as doenças ditas constitucionais. Esses dados, embora correlatos no seu valor estatístico, eram sistematicamente interpretados como estigma racial”. Esses dados epidemiológico apresentavam um problema para a Psiquiatria brasileira daquele momento, porque sua base era profundamente eugenista. 

[Recorte inicial da fala da Ana Terra]

Essa que tá falando é a Ana Terra de Leon, historiadora especializada na história da loucura e dos manicômios no Brasil. Se você já ouviu algum episódio da Rádio Colibri, as chances são grandes de ter ouvido a voz dela! A Ana Terra falou pra gente sobre esse perfil eugenista da Psiquiatria brasileira.

[Recorte da fala da Ana Terra]

Se a psiquiatria brasileira era baseada na teoria da degeneração, como explicar que as doenças “constitutivas” – ou seja, de base hereditária – seriam mais prevalentes entre brancos? Jurandir da Freire Costa afirma que, ao invés de olhar para as causas sociais das doenças mais prevalentes entre pessoas não-brancas naquele momento, os psiquiatras viam essa diferença epidemiológica como evidência de uma degeneração da raça: “como o alcoolismo e a sífilis eram sinônimos de decadência moral e sexual, nada mais natural que tornar os programas de higiene mental em cruzada de propaganda racista”. Assim, mesmo na presença de dados clínicos que contradiziam a ideia de uma base genético-racial para as diferenças epidemiológicas, os eugenistas da Liga Brasileira de Higiene Mental se serviram de explicações biologizantes para reforçar as ideias eugênicas e o racismo da sociedade brasileira.

[Recorte da fala da Ana Terra]

Com os problemas urbanos decorrentes do rápido aumento populacional, observa-se a busca por uma “raça pura” na cidade de São Paulo e, baseado na política de embranquecimento brasileira, a manicomialização de crianças foi a forma que o médico psiquiatra Pacheco e Silva encontrou para curar a “personalidade delinquente”, por meio da prevenção com táticas educativas e corretivas que consequentemente iriam diminuir os gastos estaduais com a construção de presídio. Afinal, segundo comentado por David e Vicentin, a “delinquência” era proposta como ”consequência das patologias específicas de cada menor, e o crime seria compreendido pelas disfunções ‘anormais’ do corpo, fosse por herança biológica, fosse pelas condições de vida, e não como reflexo de estruturas econômicas, sociais e políticas”. Assim, após anos de preconceitos na constituição dos manicômios, desamparo e exclusão social, foi durante o período da ditadura militar que a população negra passou a compor maioria nos hospitais psiquiátricos. Se você assistiu ao documentário “Holocausto Brasileiro” ou leu o livro de Daniela Arbex, talvez tenha percebido que a imensa maioria das pessoas internadas nos manicômios eram negras.

Essa herança racista dos manicômios não é só algo que ficou no passado. Helena Hansen, professora de antropologia e psiquiatria da Universidade de Nova York, investiga as relações entre raça, subjetividade moral e diagnóstico psiquiátrico. Em um artigo publicado na revista “Ethos”, Hansen revelou “fatores como antecedentes raciais e status socioeconômico [que] influenciam como as equipes de tratamento posicionam os sujeitos em termos da moralidade e agência deles. Esse posicionamento, por sua vez, determina se os usuários do serviço recebem um diagnóstico de esquizofrenia ou psicose induzida por substâncias.”

A autora afirma que há na maioria das vezes uma intersecção de raça e classe, quanto ao atendimento e classificação diagnóstica dos usuários dos serviços de saúde mental e, por essa razão, “diversos autores têm apontado para o problema do racismo profundamente institucionalizado no sistema de saúde mental e vem reivindicando mudanças radicais para resolver essas inquietações.” (DHAR, 2017)

Segundo a psicoterapeuta Madison Natarajan, em seu artigo para o Mad in Brazil, “vários estudos americanos mostram que pessoas negras e latinas estão excessivamente representadas na população de pacientes com transtornos psicóticos. Isto levou os clínicos a interpretarem/atribuírem mal a sintomologia e a diagnosticarem esquizofrenia em excesso, particularmente para negros e afro-americanos”. Isso é ilustrado em um livro de 2010, de Jonathan Metzl, chamado “The Protest Psychosis”. Nesse livro, Metzl aponta exatamente essas nuances do diagnóstico das psicoses em populações afrodescendentes, trazendo uma discussão minuciosa sobre como funciona o viés racial e de classe nas políticas dos Estados Unidos, principalmente no que se refere à saúde mental. Metz aponta como pessoas em crise psicótica aguda têm maior probabilidade de serem internadas e diagnosticadas como esquizofrênicas se forem negras, enquanto pessoas brancas nas mesmas situações têm maior probabilidade de serem diagnosticadas com transtorno bipolar. Metzl busca elementos na história dos Estados Unidos para compreender esse fenômeno. Se focando em um hospital de Michigan, o Ionia State Hospital, o psiquiatra mostra como, durante a década de 1960 – justamente quando diversos movimentos antirracistas estavam emergindo nos Estados Unidos, incluindo os movimentos de direitos civis e o movimento mais radical, como os Panteras Negras e o movimento de Malcolm X – surge uma tendência de diagnosticar pessoas negras como esquizofrênicas por sua relação com o movimento negro. Metlz sugeriu que parte do grande influxo de pessoas negras nessa instituição na década de 1960 se deve a uma mudança nas descrições clínicas da esquizofrenia na segunda edição do Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais, o DSM-II, então em voga, que adicionou “hostilidade” e “agressividade” como sintomas do transtorno. Como uma parte razoável do racismo nos Estados Unidos implica em ver o negro como uma ameaça e como fonte de violência, essa mudança no diagnóstico contribuiu para o racismo estrutural na psiquiatria. No livro, Metzl apresenta um anúncio para o haloperidol, um antipsicótico, publicado em uma revista médica americana em 1974, que apresenta uma ilustração de um homem negro vestido como muitos jovens ligados aos movimentos raciais do período, com as palavras “Agressivo e beligerante? A cooperação muita vezes inicia com Haldol”.

Para Helena Hansen, os atendimentos aos usuários de substâncias “revelam as maneiras pelas quais as equipes clínicas transformam os pacientes em sujeitos morais que serão considerados merecedores pelo Estado dessa ou daquela abordagem, colocando políticas racialmente codificadas na prática clínica.” A autora ainda afirma que quando há envolvimento de uso de substâncias nos casos de psicose, “a dinâmica da raça e da classe cria uma hierarquia que define quais usuários de drogas precisam de ajuda e quais são percebidos como ‘moralmente irrecuperáveis’. A diferença entre aqueles que usam cocaína em pó em oposição aos que fumam crack é dividida em linhas raciais e socioeconômicas. Dessa forma, sua subjetividade moral no cenário psiquiátrico define o tipo de cuidado que eles receberão.”

É notável que essas distinções não se aplicam apenas ao diagnóstico de psicose, como também aos transtornos de humor, e nesse contexto, “apesar do consenso da indústria de que a maioria dos pacientes com sintomas de transtorno psicótico e de humor usa substâncias psicoativas e os tratados por uso de substâncias também apresentam sintomas psicóticos e de transtorno de humor, os dois grupos de pacientes são cuidadosamente diferenciados. Existem fatores raciais e de classe subjacentes que mantêm esses distúrbios segregados. Enquanto pacientes brancos em ambientes privados tendem a receber um diagnóstico de transtorno de humor, pacientes negros são mais propensos a serem diagnosticados com esquizofrenia. Depressão e transtorno bipolar são mais compatíveis com a reprodução social da classe média branca do que transtorno psicótico. Inúmeros empresários bem-sucedidos, personalidades da mídia e acadêmicos ‘saem’ como bipolares ou deprimidos.”

No próximo episódio da série “Racismo e saúde mental”, veremos como parte do problema também tem a ver com a formação no campo psi, e as relações dessa formação com o epistemicídio contra pesquisadores e intelectuais negros e negras. Te esperamos lá!

Se você chegou até aqui, deixamos nosso “muito obrigado” por ouvir e nos acompanhar. Estamos retornando em um novo formato, com episódios mais curtos e semanais, então fique atente aos próximos episódios! Se você quiser saber mais um pouco sobre as referências do episódio, links para redes sociais, e muito mais, entre em radiocolibricast.wordpress.com. Se você gostou do que ouviu aqui e quer mais episódios, assine o podcast no Deezer, Spotify, ou na sua plataforma favorita, usando o RSS. É só ir no site radiocolibricast.wordpress.com para encontrar essas informações. Você também pode nos ajudar compartilhando esse episódio com alguém que você goste, e deixando suas cinco estrelas para o podcast no Spotify ou no Apple Podcasts. A Rádio Colibri é um projeto de extensão da Faculdade de Psicologia da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará. A equipe é composta por Talita Souza e Luane Alencar, alunas de Psicologia na turma da Unifesspa em Jacundá, por Jayara Oliveira, Lara Farias, Lua de Oliveira, e Tainá Pureza, alunas de Psicologia da Unifesspa em Marabá, e por Caio Maximino, professor do curso. Saudações e até a próxima!

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