“Neurodiversidade” é um termo polissêmico

Vez ou outra pipocam nas redes sociais “tretas” em torno de questões correlatas à psicopatologia e à saúde mental. Ultimamente, parte da discussão gira em torno do movimento de “neurodiversidade”, em suas relações com diagnósticos disputados como autismo e TDAH, e as ideias de autodiagnóstico e de sujeito cerebral. Essas discussões são bastante “emocionadas”, e muitas vezes falta nuanças importantes para o tópico. Isso porque, como a maioria dos termos e conceitos, “neurodiversidade” e “neurodivergência” são termos polissêmicos. Vamos entender um pouco melhor?

O termo “neurodiversidade” foi introduzido no final da década de 1990 por Judy Singer, uma socióloga australiana diagnosticada como síndrome de Asperger (uma categoria diagnóstica disputada no CID-10, e que não consta mais no CID-11 nem no DSM-5, a partir do conceito de “espectro autista”). O termo apareceu no texto “Why can’t you be normal for once in your life?’ From a ‘problem with no name’ to the emergence of a new category of difference” (“Por que você não pode ser normal uma vez na sua vida? De um “problema sem nome” para a emergência de uma nova categoria de diferença”), publicado em 1999. O termo sofre diversas mutações conforme o contexto em que é aplicado, mas via de regra se refere à ideia de que categorias nosológicas que costumam ser tratadas como doenças neurológicas ou transtornos do neurodesenvolvimento, como autismo e TDAH, são expressões de “conexões neuronais” (no sentido de projeções axonais entre áreas e sub-áreas do encéfalo) “atípicas”, e que o fato de serem mais raras do que as conexões “típicas” não significa que devam ser consideradas um transtorno ou doença a ser tratada ou curada. O termo original, portanto, ressalta a ideia de diversidade ou diferença, e portanto os sintomas associados a esses diagnósticos seriam diferenças humanas que deveriam ser respeitadas como todas as diferenças (de gênero, de sexualidade, de raça, etc.).

O termo não ocorre em um vácuo, e é mobilizado principalmente por um conjunto de indivíduos que formam, de maneira ampla, um movimento. A maior parte das pessoas que reivindica o termo é diagnosticada (às vezes auto-diagnosticada, como discutiremos mais à frente) com alguma variação do transtorno do espectro autista, com um grau de funcionamento relativamente “preservado”, comumente identificadas pelos diagnosticadores como “autistas de alto desempenho”.

Judy Singer atribui o surgimento desse movimento a vários fatores: “principalmente a influência do feminismo, que forneceu às mães a autoconfiança necessária para questionarem o modelo psicanalítico dominante que as culpava pelo transtorno autista dos filhos; a ascensão de grupos de apoio aos pacientes e a subseqüente diminuição da autoridade dos médicos, possibilitadas, sobretudo, pelo surgimento da Internet, que facilitou tanto a organização dos grupos, como a livre transmissão de informações sem mediação dos médicos; finalmente, o crescimento de movimentos políticos de deficientes, movimentos de autodefesa e auto-advocacia de deficientes, especialmente de surdos, que estimulou a auto-representação da identidade autista.”

Jadson Rodrigo Silva Gomes, por exemplo, identifica a ideia de “neurodiversidade” muito mais pela aproximação do autismo aos movimentos anticapacitistas do que pela aproximação com a luta antimanicomial. De fato, os chamados “transtornos do neurodesenvolvimento” agrupam um conjunto de diagnósticos que incluem não só o TEA e o TDAH, mas também transtornos de aprendizagem e “deficiência intelectual” (que inclui várias condições associadas a fatores genéticos, com síndrome de Down, fenilcetonúria, e síndrome de Lesch-Nyhan). Talvez essa seja uma importante raiz da discussão, e que às vezes perdemos de vista na crítica dirigida à partir de um ponto de vista antimanicomial.

Independente disso, a retórica comum do movimento de neurodiversidade está na ideia de que se trata essencialmente de uma forma de resistir ao poder médico, e que isso foi possível, em países anglófonos, a partir de condições associadas à luta anticapacitista, às epistemologias feministas, e ao fluxo de informações na Internet. Talvez essa última característica, considerando a capacidade que as redes têm de amplificar o poder recuperativo do Espetáculo, seja vital para entender o que vêm surgindo como debate no momento.

Em um artigo de 2009, Francisco Ortega analisou o quanto a internet foi fundamental para a formação de grupos de indivíduos que partilham uma característica corporal ou mental. A própria dinâmica das redes sociais faz emergir discursos contraditórios e o fenômeno do auto-diagnóstico, que cada vez mais passa a compreender o diagnóstico a partir de uma identidade, algo que se é e que organiza as formas e discursos de si:

“Para os ativistas autistas, em contrapartida, o transtorno remete a uma questão identitária. Autismo não é alguma coisa (uma doença) que se “tem”, mas algo que se “é”. Não é a “concha” que aprisiona a criança normal. Não podemos separar o transtorno do indivíduo e, se fosse possível, teríamos um indivíduo com uma identidade diferente. O autismo é “impregnante, colore cada experiência, cada sensação, percepção, pensamento, emoção e encontro, todos os aspectos da existência”, escreve o ativista autista Jim Sinclair (1993). Evidentemente, a posição no debate identitário determina a posição em relação à busca pela cura e às terapias. À medida que os pais de autistas falam de “ter” autismo e acolhem tentativas de cura e terapia, os movimentos da neurodiversidade apostam no “ser” autista e se opõem às tentativas de cura e às terapias cognitivas.”

Francisco Ortega, “O sujeito cerebral e o movimento da neurodiversidade”

É importante ter isso em mente, porque parte da crítica que é feita a partir do movimento antimanicomial à noção de neurodiversidade vêm da percepção de que, ao assumir um discurso de “neurodivergência”, os indivíduos estariam assumindo também um discurso de “neuronormalidade” – o ponto de referência a partir do qual se poderia “divergir” -, o que está atrelado ao modelo médico e a uma forma manicomial de pensar “doença mental”.

Talvez a principal crítica levantada nas redes, no entanto, têm a ver com a desconfiança em relação a explicações “cerebrais” para os processos psicológicos. Um outro artigo de Francisco Ortega nos apresenta uma visão mais nuançada da questão, ao mostrar as contradições e divergências dentro do discurso da neurodiversidade. Ele usa o conceito de “neurocultura” ou “sujeito cerebral” para iluminar a questão. O “sujeito cerebral” é uma maneira de “biossociabilidade”, entendida como “uma forma de sociabilidade apolítica constituída por grupos de interesses privados, não mais reunidos segundo critérios de agrupamento tradicional, como raça, classe, estamento, orientação política, como acontecia na biopolítica clássica oitocentista […], mas sim segundo critérios de saúde, performances corporais, doenças específicas, longevidade, entre outros”. Na concepção de “sujeito cerebral”, as explicações que as pessoas dão para os processos psicológicos/mentais são relacionadas a predicados corporais – ou seja, a uma explicação reducionista, na qual todos os processos mentais se reduzem a processos cerebrais. “Todo um vocabulário fisicalista-reducionista é utilizado na descrição de crenças, sentimentos, desejos, volições. Os atos psicológicos têm sua origem em causas físicas e as aspirações morais do indivíduo são medidas segundo performances corporais. Como conseqüência, concepções psicológicas e internalistas de pessoa são deslocadas para a exterioridade, dando lugar à constituição de identidades somáticas”.

Ortega argumenta que essa descrição do sujeito cerebral é o pano de fundo para entender o porquê do modelo de “neurodiversidade” para falar sobre esse movimento: “Para esses grupos, o cérebro vem se tornando um critério biossocial de agrupamento fundamental”. O paradoxo é que a cerebralização, para o caso dos outros diagnósticos – depressão, esquizofrenia, transtorno bipolar, &c – tende a produzir uma “dessubjetivação”:

“Quando um psiquiatra de orientação biológica fala da depressão de maneira semelhante àquela que um cardiologista fala de uma doença cardíaca, produz-se um distanciamento subjetivo da doença, uma dessubjetivação. O indivíduo tem esquizofrenia, ou transtorno bipolar, em vez de ser deprimido, esquizofrênico e/ou psicótico. Assim como o indivíduo pensa que tem uma doença cardíaca e não que ele é essa doença, no caso das doenças mentais, a depressão ou a psicose aparecem escritas no corpo – e mais especificamente no cérebro – nas descrições da psiquiatria biológica”.

Francisco Ortega, “O sujeito cerebral e o movimento da neurodiversidade”

No caso da neurodiversidade, o que se passa, segundo Ortega, é precisamente o contrário: é justamente ao afirmar que as formas “neuroatípicas” de agir se devem a diversidade cerebral que o movimento produz uma identificação, uma “subjetividade cerebral”. É uma espécie de afirmação radical de “somos nosso cérebro”.

O que muito se critica, então, é justamente uma postura de afirmar a cerebralização como explicação para toda diferença, como se os processos psicológicos fossem totalmente explicáveis pelos processos cerebrais. Na psiquiatria biológica, a cerebralização do sofrimento têm efeitos bastante complicados, incluindo individualização do sofrimento e diminuição do papel dos fatores sociais no sofrimento psíquico. Mas Ortega aponta um baita paradoxo: no caso do movimento de neurodiversidade, uma ideologia solipsista, reducionista e cientificista – o sujeito cerebral – pode servir de base para a formação de identidade e de redes de sociabilidade e comunidade. Ou seja, para as pessoas que fazem parte dessa visão, falar de si como sujeito cerebral ajuda não somente a se desvencilhar do poder médico, mas também a criar redes de sociabilidade.

Essa é uma constatação bastante interessante, porque dá dimensão da complexidade da situação. Muitas vezes, fazemos a crítica a partir da leitura da antipsiquiatria com base na nossa própria experiência com cerebralização do sofrimento – isso é, da psiquiatria biológica como suporte para a medicalização da vida. Mas a questão tem muito mais facetas do que estamos enxergando!

Antes que cancelem o podcast, isso não significa que não é preciso problematizar o termo e a concepção de neurodiversidade ou neurodivergência – ele é, de fato, bem problemático, principalmente em um contexto de redes sociais na sociedade do espetáculo. Mas é preciso também fazer isso de maneira a escutar o que o pessoal da neurodiversidade têm a dizer, e entender como a ideia de neurodiversidade se articula tanto com perspectivas reificantes quanto com tentativas de libertação. #pas

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