Rádio Colibri #12: Autodiagnóstico, subjetividades algorítmicas, e redes sociais, com Paulo Faltay

Um curioso fenômeno ocupa as redes sociais: pessoas que ostentam diagnósticos de transtornos mentais, mesmo sem que esse diagnóstico tenha sido oficialmente dado por profissionais de saúde. Como podemos entender a complexidade desse fenômeno? Direto da Comuna Imaginária do Akanga, a Rádio Colibri retorna das férias, conversando com Paulo Faltay!

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Spotify: https://open.spotify.com/episode/7BEtvvklDiji5D9g2uP3Cr?si=d_cZXe8sQEiGTYhle15szA

Referências do episódio:

Autodiagnóstico do autismo: https://olharesdoautismo.com.br/2020/09/24/autodiagnostico-de-autismo/

Lucy Johnstone, “Psychological Formulation as an Alternative to Psychiatric Diagnosis”: https://journals.sagepub.com/doi/abs/10.1177/0022167817722230J

Peter Conrad e Deborah Potter, “From Hyperactive Children to ADHD Adults: Observations on the Expansion of Medical Categories”: https://academic.oup.com/socpro/article-abstract/47/4/559/1678332

Nikolas Rose, “Disorders Without Borders? The Expanding Scope of Psychiatric Practice”: https://www.cambridge.org/core/journals/biosocieties/article/abs/disorders-without-borders-the-expanding-scope-of-psychiatric-practice/62E2D65A86A5355BA8E59B39311D7DAD

Etienne de La Boetie, “Discurso da servidão voluntária”: https://resistir.info/livros/discurso_da_servidao_voluntaria_etienne_de_la_boetie.pdf

Pierre Clastres, “Liberdade, Mau Encontro, Inominável”: https://www.google.com/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=&cad=rja&uact=8&ved=2ahUKEwjOr4qYtP75AhWWrpUCHTkdC80QFnoECAYQAQ&url=https%3A%2F%2Fedisciplinas.usp.br%2Fmod%2Fresource%2Fview.php%3Fid%3D2363477&usg=AOvVaw21HLjmYO2FcvpOspWcrQq4

Manuel Castells, “Sociedade em rede”: https://egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/a_sociedade_em_rede_-_do_conhecimento_a_acao_politica.pdf

Maria Paula Sibilia, “O homem pós-orgânico: corpo, subjetividade e tecnologias digitais”: https://www.contrapontoeditora.com.br/produto.php?id=3041

Christian Laval e Pierre Dardot, “A nova razão do mundo”: https://www.boitempoeditorial.com.br/produto/a-nova-razao-do-mundo-557

Edson Telles, “Governamentalidade algorítmica e as subjetivações rarefeitas”: https://www.scielo.br/j/kr/a/PQTcJnpCGrP7PD5TrXKWzZm/?lang=pt#


Esse podcast é distribuído sob uma Licença Feminista de Produção por Pares: https://coletivoponte.noblogs.org/post/2020/11/22/a-licenca-feminista-de-producao-por-pares-f2f/


Transcrição do roteiro

Um curioso fenômeno ocupa as redes sociais: pessoas que ostentam diagnósticos de transtornos mentais, mesmo sem que esse diagnóstico tenha sido oficialmente dado por profissionais de saúde. Como podemos entender a complexidade desse fenômeno? Direto da Comuna Imaginária do Akanga, essa é a Rádio Colibri!

Você já reparou como, nos últimos anos, algumas pessoas chegam a diagnósticos próprios nas redes sociais? Muitas pessoas se identificam como “tendo” depressão, TDAH, ou autismo, muitas vezes com base em suspeitas. Esse fenômeno é acompanhado por dezenas de vídeos curtos com dancinhas no TikTok e outras plataformas semelhantes, apresentando “sinais de que você tem ansiedade”, “é assim a manifestação da depressão no nosso corpo”, e “coisas que eu achava normal até descobrir que era [insira aqui seu diagnóstico]”. Esses vídeos, muitas vezes, apresentam listas de coisas absolutamente normais que as pessoas fazem ou sentem, e as colocam como “sinais” da presença de um transtorno. Em um site sobre autismo, abundam relatos sobre como as pessoas se auto-diagnosticam no espectro autista e até hoje não tem diagnóstico formal. Como podemos entender esse estranho fenômeno?

Nós já discutimos algumas vezes os problemas do diagnóstico de transtorno mental. No nosso primeiríssimo episódio, discutimos como a psiquiatria hegemônica, ao tratar o sofrimento psíquico como as outras formas de adoecimento – o tal do “modelo biomédico” – produziu um entendimento que reduz as experiências das pessoas a rótulos diagnósticos e coloca como única possibilidade um tratamento “normalizador”. A psicóloga britânica Lucy Johnstone apontou como “[o] diagnóstico psiquiátrico tem sido criticado por muitos motivos ao longo de muitos anos – falta de confiabilidade e validade, exclusão de contextos sociais, produção de estigma, etc.”. Ela sustenta que um dos problemas dos diagnósticos é que eles levam a uma perda de sentido. Citando-a novamente: “Ao despojar as experiências das pessoas de seu significado pessoal, social e cultural, o diagnóstico transforma ‘pessoas com problemas’ em ‘pacientes com doenças’. Histórias de trauma, abuso, discriminação e privação são seladas atrás de um rótulo, à medida que o indivíduo é lançado no que muitas vezes é uma jornada vitalícia de incapacidade, exclusão e desespero”.

Nas redes sociais, é mais comum observar esse fenômeno em torno dos transtornos do espectro autista e de déficit de atenção e hiperatividade. Os sociólogos Peter Conrad e Deborah Potter descrevem a história do TDAH como uma condição antes restrita a crianças, mas que agora é entendida como algo “para a vida toda”. Esse fenômeno foi acompanhado de uma extensa disputa sobre as causas do TDAH, e, em parte sob influência das ideologias medicalizantes e farmaceuticalizantes, uma “cerebralização”: o TDAH passou a ser visto como tendo causas neurológicas, e isso justificaria a cronicidade do transtorno. Dentro deste contexto, muitos adultos que afirmavam se reconhecer na sintomatologia de TDAH estavam procurando confirmação oficial de seu autodiagnóstico por parte de médicos e psiquiatras, muitas vezes também pedindo para serem tratados com medicamentos. Neste caso, observa-se uma espécie de “psiquiatrização de baixo para cima”, impulsionada principalmente pela demanda dos indivíduos comuns por explicações, pelo reconhecimento oficial, e por tratamento médico de seus problemas de vida ou sofrimento psíquico, relacionado ao que o sociólogo Nikolas Rose descreveu como a prontidão para “a remodelação psiquiátrica dos descontentes”.

Paulo Faltay, estudioso da comunicação social e pesquisador do MediaLab.UFRJ e da Rede Latino-americana de estudos em vigilância, tecnologia e sociedade/LAVITS, falou um pouco sobre o que vêm observando sobre esse processo de auto-diagnóstico nas redes sociais, e como constroem formas de subjetivação:

O Paulo aponta pra gente como não se trata somente de buscar entender ou explicar seu sofrimento, ou de dar nome para um sentimento, mas também de criar para si uma certa identidade. Isso porque o diagnóstico não é somente uma afirmação neutra sobre o mundo, mas uma afirmação que tem a ver com as formas com as quais as pessoas criam identificações com determinados grupos. Isso cria discursos sobre si, mas também comunidades. Diagnosticar sempre foi uma ferramenta para classificar, separar, e definir grupos e populações de pessoas; um diagnóstico de transtorno depressivo maior não diz muito sobre o que me aconteceu, ou sobre a forma como eu vivencio determinadas formas de sofrer, mas é uma espécie de “rótulo” que me identifica como pertencente a um grupo. É um processo curioso de se identificar com algo que, historicamente, foi usado para o governo do outro

Esse processo de identificação pode parecer paradoxal, mas é uma ferramenta muito importante do poder. No século XVI, o pensador francês Etienne de la Boétie escreveu o seu “Discurso da servidão voluntária”, em que levanta a pergunta já clássica: como podem as pessoas desejar sua própria dominação? O antropólogo Pierre Clastres, no texto Liberdade, mau encontro, Inominável (1976), afirma que a questão de La Boétie sobre a servidão é “trans-histórica”. Na psicanálise, Sigmund Freud e Wilhelm Reich se perguntarão o mesmo, ao analisar a “psicologia das massas” e o fascismo, respectivamente, encontrando uma resposta nos processos de identificação: o poder só se constitui a partir de uma espécie de economia libidinal – isto é, dos desejos, das motivações pelas quais a identificação com os poderosos e a idealização desses é um horizonte alucinatório indispensável para a formação de um “nós” que esse poder incorpora ao mesmo tempo em que o desincorpora. 

Assim, parece que, ao buscar um diagnóstico para chamar de seu nas redes sociais, as pessoas estão, em certa medida, “pulando etapas” do processo de medicalização: já não é um discurso de fora que as subjuga e as coloca como loucas, ou lhes dá um diagnóstico, mas são elas próprias que buscam o discurso que reduz suas formas individuais de sofrer a diagnósticos específicos. Mas esse processo é mais complexo do que isso. Em um artigo de 2006, Nikolas Rose nos lembra sempre o quanto simplificamos a situação ao afirmar que a medicalização é um processo completamente guiado pelos interesses da indústria farmacêutica; ele fala sobre “transtornos nas fronteiras” que “são vivenciados e codificados como tal, por indivíduos e seus médicos, em relação a uma norma cultural de um si-mesmo ativo, responsável, e de livre escolha, realizando seu potencial no mundo através da formação de um estilo de vida. E a eles é dado forma pela disponibilidade de categorias tais como depressão, pânico, distúrbio de ansiedade social e TDAH”. Note como esse processo de autodiagnóstico não é (somente) o resultado de uma pressão externa por identificação, mas também uma demanda de reconhecimento dos sofrimentos por parte das pessoas que buscam diagnóstico. Naquele site que comentamos, muitos relatos aparecem na forma de pessoas que buscam o autodiagnóstico porque, de uma forma ou de outra, não tem acesso a um diagnóstico formal. O Paulo falou um pouco pra gente sobre o que enxerga como essa função de identificação:

Chama a atenção também que esses processos de autodiagnóstico ocorram nas redes sociais. Claro, a busca por informações sobre diagnósticos diversos sempre ocorreu na Internet, e antigamente o principal foco eram os sites médicos. As médicas Angela Ryan e Sue Wilson apontaram, em um editorial de 2008, como até mesmo esses sites médicos podiam produzir mais danos do que benefícios: se, por um lado, mais informações sobre um sintoma ou diagnóstico poderiam beneficiar as pessoas diminuindo visitas desnecessárias a profissionais da medicina ou empoderando pacientes, esses sites de auto-diagnóstico poderiam “levar a mais ansiedade associada a um diagnóstico falso ou verdadeiro de uma condição séria e/ou de risco à vida. Além disso, este diagnóstico seria feito sem a presença de um profissional de saúde para fornecer um contexto, para refletir sobre a probabilidade de diagnósticos diferentes, ou para colocar em prática quaisquer passos necessários para tornar o diagnóstico definitivo”. O que há de diferente agora?

Bom, as redes sociais representam não somente uma fonte de informações para as pessoas, mas também uma espécie de vitrine de identificação. Aqui, como aponta o sociólogo espanhol Manuel Castells, a comunicação tem um papel extremamente importante na vida dos indivíduos, agora transformados em sujeitos digitais, e essa vida passa a ocorrer em espaços extremamente simbólicos. Maria Paula Sibilia, uma pesquisadora da comunicação social, aponta como as redes sociais promovem um “modo performático de ser e estar no mundo”: “Em outras palavras, em uma atmosfera moral renovada como a que se vive atualmente nas sociedades aglutinadas pelos mercados globais, dispositivos como as redes sociais Facebook, Twitter, Instagram e Youtube, assim como a proliferação de câmeras e telas sempre disponíveis para se ver e se mostrar, estão a serviço dessas novas ambições. Servem para tornar visível a própria performance – e, nesse gesto, performar e projetar um eu atraente – para um público potencialmente infinito”.

O contexto para esse “modo performático de ser e estar no mundo”, claro, é a racionalidade neoliberal. Esse termo foi popularizado pelos sociólogos franceses Christian Laval e Pierre Dardot, que, partindo da leitura de Michel Foucault, afirmam o neoliberalismo não somente como uma organização econômica do Estado, mas como uma racionalidade – uma forma de empregar técnicas e procedimentos para dirigir e governar a conduta das pessoas. O sujeito produzido por essa racionalidade é uma espécie de “sujeito-empresa”, que rege sua própria vida como se estivesse gerenciando uma empresa. Uma consequência disso é que as identidades dos sujeitos vão perdendo gradativamente seu referencial de vida e de ação, antes ancorado nas instituições sociais e comunidades, para se balizar em uma pura individualidade. O Paulo comentou um pouco sobre como esse processo relaciona o autodiagnóstico, comparando com outro fenômeno que vem pesquisando: a subjetividade algorítmica e os aplicativos de auto-cuidado.

O conceito de subjetividade algorítmica pode ajudar a entender um pouco esse fenômeno do autodiagnóstico, então. O filósofo Edson Teles usa o conceito de “governamentalidade”, proposto por Michel Foucault, para falar sobre como a autonomia das máquinas e os algoritmos que são usados para nos oferecer o que ouvir, frequentar, assistir, e fazer mostram uma nova face dessa governamentalidade. Não se trata de falar em “governamentalidade” como um poder de Estado, mas como as formas de conduzir as ações dos outros e das coisas a partir de uma lógica de cálculos e estatísticas. Em um artigo de 2018, Teles argumenta que a introdução dos algoritmos amplia essa governamentalidade: “Estes novos dispositivos permitem reduzir o investimento de controle no indivíduo médio ou normal, como se valoriza na tradicional normatização social, propiciando uma ação sobre os processos e o meio ambiente. Pode-se acessar a ‘realidade’ de um território, grupo, instituição, mercado, país em micropartes de segundos. Dito de outra forma, apreende-se a realidade de modo imediato e imanente”. Ou seja, a enorme velocidade com que agora se obtém dados sobre os gostos também permite produzir esse gosto de maneira muito mais ampla do que antes. Se você gostou dessa música, irá gostar dessa aqui. Veja também esse vídeo. Tomemos um exemplo que Edson Teles coloca em seu artigo: “Imagine-se combinando com amigos, via celular, uma saída noturna. Vocês pensam em cinema, talvez uma janta ou cerveja. Enfim, qualquer diversão que promova o encontro e a boa conversa. Após a pesquisa no buscador preferido e feita a escolha entre as opções oferecidas, vocês inserem o nome do estabelecimento no aplicativo de localização e, em seguida, chamam o serviço de transporte. O valor da corrida será debitado no cartão de crédito. Nestes minutos de utilização de aplicativos e outros serviços via Internet, com alguma passagem nas redes sociais, enormes bases de dados receberam e transmitiram informações em torno de suas movimentações. Perante este acúmulo de entradas e saídas de dados, o indivíduo realiza seus desejos sob o custo de tornar-se mera engrenagem. As máquinas, cujas nuvens de informações pairam através, sobre e entre nossas vidas, mitigam as distâncias entre os mundos físico e virtual, acionando e satisfazendo necessidades coletivas e singulares”. Faltay comentou pra gente como essas subjetividades algorítmicas estão relacionadas ao processo de autodiagnóstico:

Ainda há muito a ser investigado para entender melhor esse processo de autodiagnóstico via redes sociais. Como esses processos de identificação e subjetivação se relacionam com os algoritmos das redes? Como podem se relacionar com os sistemas “oficiais” de diagnóstico? Como ficam os serviços de saúde mental, e trabalhadores e trabalhadoras da saúde, em relação a isso tudo?

Se você chegou até aqui, deixamos nosso “muito obrigado” por ouvir e nos acompanhar. Estamos retornando de um hiato de férias, então fique atente aos próximos episódios! Se você quiser saber mais um pouco sobre as referências do episódio, links para redes sociais, e muito mais, entre em radiocolibricast.wordpress.com. Se você gostou do que ouviu aqui e quer mais episódios, assine o podcast no Deezer, Spotify, Funkwhale, ou na sua plataforma favorita, usando o RSS. É só ir no site radiocolibricast.wordpress.com para encontrar essas informações. Você também pode nos ajudar compartilhando esse episódio com alguém que você goste, e deixando suas cinco estrelas para o podcast no Spotify ou no Apple Podcasts. A Rádio Colibri é um projeto de extensão da Faculdade de Psicologia da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará. A equipe é composta por Talita Souza e Luane Alencar, alunas de Psicologia na turma da Unifesspa em Jacundá, por Lara Farias e Pedro Dias, alunos de Psicologia da Unifesspa em Marabá, e por Caio Maximino. Saudações e até a próxima!

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